quarta-feira, 26 de dezembro de 2007

Os Narcísicos

"Portugal anda cheio de chefes narcísicos. Querem dominar tudo e todos e não mostram qualquer empatia pelos problemas dos que os rodeiam.
A principal característica destas pessoas é um sentimento grandioso da sua importância. Hipervalorizam todos os dias as suas capacidades e exageram tudo em que participam, exigindo que os outros dêem o mesmo valor ao que atribuem a si próprios. Embora o disfarcem com cuidado, desvalorizam as realizações alheias, sendo frequentes os comentários de que foram os primeiros a realizar os feitos de que — às vezes - são os únicos a ter orgulho.
Aspiram a altos voos: com a cumplicidade dos média e o trabalho das "agências de comunicação", estão preocupados com fantasias de sucesso ilimitado, poder ou brilho especiais. Ruminam com frequência acerca da "merecida" admiração e propalam que a história lhes fará justiça, quando a espuma dos dias desaparecer e o seu mérito for definitivamente reconhecido. Quando se aproximam de gente comum, esperam palmas; quando não surgem aplausos, depressa racionalizam que as suas qualidades especiais só podem ser compreendidas por gente de primeiro plano, famosos como eles um dia hão-de ser; ou então não tardam em acusar os críticos de maquinações mal intencionadas.
Estes chefes procuram sempre o elogio e não é raro utilizarem a sedução à sua volta. Necessitam de admiração constante, porque vivem preocupados com a forma como se estão a sair, desejosos de obter uma cotação favorável, testemunho da atenção de que dependem. No fundo, aguardam a reverência de todos: para a garantir ao máximo, rodeiam-se de gente submissa que, para os servir, decretou para si mesma o silêncio e o elogio fácil ao chefe: podem ser sobrecarregados com trabalho e críticas ferozes que jamais abrirão a boca contra quem manda.
Os chefes narcísicos gostam de falar de si. Adoram mostrar "cultura" através de citações de livros que só folhearam, ou de lugares-comuns tirados de mensagens da Internet: por isso, receiam confrontar-se com gente de densidade cultural, a quem tratam por "intelectuais", sujeitos teóricos que nunca realizaram nada, ao contrário dos chefes, eficazes e pragmáticos. O seu lema é: "Antes de mim, o dilúvio". Nos raros momentos em que reflectem sobre o seu percurso, podem invejar as contribuições de outros, sobretudo se estes obtiveram algum sucesso: depressa decidem que só eles são dignos de admiração e que o elogio chegará, com a pompa e a circunstância de que sempre se julgam merecedores.
Os comportamentos arrogantes e altivos destes chefes são característicos. Muitas vezes mostram desdém e atitudes de complacência, considerando que os sentimentos dos outros são sinais de fraqueza ou vulnerabilidade, por isso não se detêm no caminho que os levará à glória.
Quando não são servidos como desejam, ou quando alguém ousa uma crítica, respondem com agressividade, como se estivessem a ser atacados. Esta raiva narcísica é um dos traços mais evidentes do seu carácter: perante a discordância, reagem com fúria e podem não reparar que magoam com os seus comentários. Na sua ânsia de poder, não é raro serem capazes de usurpar recursos extra e privilégios especiais, que acreditam ser inteiramente justos e só ao alcance de quem é verdadeiramente glorioso.
Para manterem a ilusão da auto-suficiência (necessária por causa do temor de que afectos positivos conduzam à destruição do sentido de si próprios), não se relacionam profundamente com ninguém, porque assim julgam controlar tudo à sua volta e evitar a destruição psíquica da sua (afinal) frágil pessoa.
Estes chefes não são verdadeiros democratas: falta-lhes o sentido do reconhecimento do outro, a partilha e a capacidade de amar que caracteriza os verdadeiros líderes: podem mandar, mas não serão amados, apenas tolerados, mais tarde ou mais cedo cairão do pedestal que construíram para si próprios.

(Nota- esta crónica contém fragmentos da DSM-IV-R, classificação americana das doenças mentais)"

Artigo de Daniel Sampaio in revista Pública de 23-12-2007

1 comentário:

Anónimo disse...

excelente texto e que reflecte muito bem esse tipo de pessoas que no fundo
até podem nem ser felizes porque querem sempre mais um bocadinho e não se contentam com as pequenas coisas da vida que até podem ser o essencial
neste pequeno filme que é a nossa vidinha ...